domingo, outubro 12, 2003

- começando hoje um conto em sete partes, um capítulo por dia postado depois de ser escrito:

DEZ MIL E OITENTA MINUTOS - parte 1

DOMINGO

Acordei pra ver o vento soprando uma garoa fina, constante e fria por entre as frestas da janela de madeira, como se uma equipe de cinema mexesse o jato de chuva falsa de um lado pra outro. O movimento já havia começado sem mim, por entre as nuvens apagadas. Todas as refeições foram engolidas e chocolates comidos; há uma diferença. O silêncio da aspiração fictícia dá aos poucos lugar a um zumbido crescente da colméia posta em movimento, muito mais breve do que devia. O gosto da noite passada e da retrasada impregnado na cabeça a cada respirada, piscada, fungada, cuspida.

Há milhares de germes extras habitando meu corpo, só de passagem. O processo todo é irrelevante pra eles, riem do próprio fim. Alguns estão em competição esportiva. Os ossos do peito estalam quando me espreguiço e vejo se o pulmão não pára se inspiro muito forte. Nada a fazer além da porta da frente então me ocupo a iludir o cérebro com promessas que não vou cumprir de mais e melhores Domingos. Pelo menos hoje. Pessoas amassadas se arrastam pela rua. Duas delas, não esperaria mais.

Os germes me dizem que precisam de mais sono, mas como não gosto deles eu nego. Que se virem os desgraçados. Espero que não façam amizade com as larvas de mosquito que rastejam debaixo da canaleta por onde correm as porta do box do banheiro. Podiam tramar uma revolução e aí sim eu estaria fodido. O dia é um sonho daqueles em que não se quer desesperadamente chegar em casa ao se fugir de uma situação chata. Só não é um dos que se encontra uma amiga há muito sumida em quem se dá um abraço longo e aconchegante porque a gente se conhece bem - mesmo sem nunca nos termos visto antes.

- Posso ficar aqui um pouco, ela pergunta.

Não há necessida de se ir até qualquer outro cômodo da casa agora. Até porque a parte de trás das coxas doem de tanto tempo que estou sentado aqui. Flashes de outros mundos estouram na minha frente mas parecem tão iguais ao meu que não exploro direito nenhum deles. Vale mais ir ao banheiro passar fio dental nos dentes e ver minha gengiva sangrar. Um pássaro apressado pia. E de novo. Um cachorro encontrou a alguns quarteirões um intruso, ou pelo menos alguém de quem não gosta.

O zumbido pára porque quero. Mas vai continuar depois que eu for dormir e não estiver olhando. Não tem anestesia pra isso a não ser fingir ignorar, fazer barulho suficiente pra encobrir ou tentar enfiá-lo em uma lata pra ser vendido. Só que agora não. Minha melhor opção neste momento é encobrir com meus Grandes Pensamentos [de realidades alternativas melhores, mais limpas e arrojadas] disparados no escuro. É tão árido que me dá sede. Procuro meu reflexo no vidro mas a luz não me deixa encontrá-lo.

É uma vida de aquário isso aqui.

(c) 2003 Hector Lima

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